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Acredito que já estávamos em outubro quando bombas pararam de cair, o que tirou dos meus pais o constate medo de ficarmos desabrigados, ou pior: de perdermos a vida. Mas outra questão veio à tona.
O plano de meu pai de abandonar o país havia ido por água abaixo, embora toda sua especulação de que Hitler invadiria a Polônia estivesse certa. Agora ele estava desempregado, com uma família para sustentar numa cidade onde não conhecia nada. Pelos anos seguintes, o dinheiro que Aaron havia guardado para pagar nossa fuga acabou servindo como uma fonte monetária finita para sobrevivermos. Tínhamos que usar o mínimo possível desta poupança até que Aaron conseguisse se estabilizar em um emprego.
Como se não bastasse todos esses receios, bem como a insegurança, uma coisa que jamais fora motivo de preocupação, pelo menos para meu irmão e eu, começou a nos perturbar. Ora, Varsóvia agora era dos alemães; eles que ditavam as novas regras, as novas imposições, e nossa origem passou a ser mais importante do que nossa dignidade.
Benjamin e eu sabíamos que éramos judeus, e na verdade não dávamos muita importância a isso. Não éramos praticantes, portanto nosso estilo de vida se assemelhava bastante com o dos nossos amigos de outras religiões. Embora tivéssemos descendência judaica, continuávamos sendo humanos; mas isso não estava claro para os nazistas.
Com certa frequência, víamos manchetes indignantes nos jornais. De semana a semana, os judeus estavam proibidos de realizar alguma tarefa pública. Não demorou muito para que fosse proibido visitar certos lugares, como praças, parques. Não tardou a entrar em vigor, também, a lei que nos proibia de utilizar transporte público, tal como trens e bondes. Em novembro daquele ano, judeus que fossem maiores de doze anos, ao saírem nas ruas, eram obrigados a ter costurado em sua vestimenta a estrela de Davi, a fim de uma imediata identificação racial. Tal estrela tinha um padrão de cor e tamanho, e deveria ser comprada do Conselho Judaico, órgão criado pelos nazistas que tratava de assuntos como este.
Algo estranho começou a acontecer. Mesmo após os netos de Kamilia e Olek terem partido, Benjamin e eu continuamos frequentes em sua casa, assim como algumas outras crianças moradoras daquela rua. Eles adoravam nos receber, e Olek sempre tinha algo novo para contar.
Porém, passado alguns meses, após o anúncio de todas aquelas diretrizes, as pessoas começaram a olhar diferente para nossa família. Nossos vizinhos idosos tratavam as crianças não judias melhor do que nós. Kamilia preparava doces e bolos que só alguns poderiam comer, enquanto eu e meu irmão apenas olhávamos, impedidos de saciar nossa vontade.
Adele ficou irada com tal fato, e no mesmo dia foi “ter uma conversa” com eles. Ficamos em casa, esperando-a e ouvindo através da parede a briga feia que estava acontecendo. Após algumas horas, Adele abriu a porta da sala furiosa.
— Crianças, vocês nunca mais vão voltar naquela casa de velhos desgraçados.

Nós estávamos presos em Varsóvia, não tendo para onde ir. Os meios de transporte não nos eram permitidos mais. Mas se bem que, caso quiséssemos utilizá-los, não tínhamos qualquer destino. No decorrer daquele próximo ano que ficamos naquela casa apertada, provaríamos de uma realidade que jamais havíamos presenciado.
Assim como tudo estava saindo do que meus pais haviam planejado, as pessoas que antes conhecíamos (como nossos vizinhos) agora fingiam que nós não existíamos. Era como se, na verdade, nunca houvéssemos existido.
Meu irmão e eu já tínhamos sete anos e meio, e com certa frequência saíamos de casa para dar uma volta. Os amigos que fizemos em Varsóvia fingiam não nos conhecer mais, portanto íamos apenas nós dois em nossos passeios. A parte boa de sermos novos era que não precisávamos usar a estrela de Davi em nossa roupa, obrigatória apenas para maiores de doze anos, então ninguém implicaria conosco caso quiséssemos fazer algo proibido a judeus. O fato de que não aparentávamos ser judeus dava-nos mais asas. Nossos olhos claros ajudar-nos-iam a passar por cidadãos poloneses “puros” facilmente. Divertíamo-nos dando voltas nos parques e sentando em seus bancos. Quando tínhamos dinheiro, andávamos de bonde pela cidade, sem que ninguém nos impedisse. Claro que só fazíamos tais coisas quando não havia ninguém conhecido por perto; caso contrário, corríamos risco de sermos denunciados.
Enquanto achávamos meios de nos divertir, nosso pai buscava condições de sobrevivência. Não sabíamos por quanto tempo sua reserva de dinheiro, que outrora fora destinada a pagar o contrabandista, duraria. Ele precisava de um emprego, e rápido. Sua sorte era que tinha uma boa formação acadêmica, e poderia trabalhar com algo relacionado à literatura.
Mas não foi o que aconteceu. Ninguém queria contratar um judeu como professor de alguma coisa. Ele também tentou vários outros empregos, sem que o aceitassem. Meu pai chegou a conseguir alguns trabalhos, mas logo era demitido, pois estava “tomando o lugar de um não judeu” onde estava trabalhando.
Meus pais se trancavam no banheiro para discutirem, enquanto Benjamin e eu ouvíamos do lado de fora. Acredito que eles tentavam evitar brigar na frente dos filhos, mas de nada adiantava, pois sempre encostávamos nossos ouvidos na porta para não perder nenhum detalhe ou argumento das discussões. Elas, em sua maioria, eram sobre os mesmo assuntos: ou minha mãe que estava “gastando” muitos ingredientes no preparo dos alimentos, colocando muitos legumes na sopa, ou meu pai que não estava conseguindo arranjar um emprego que nos sustentasse, pois não era possível saber até quando usaríamos sua reserva de dinheiro, que uma hora ou outra acabaria. Adivinhem: minha mãe sempre ganhava as discussões.
E isso refletia em nosso dia a dia. Em nosso aniversário de sete anos, não me recordo de ter ganhado algum presente, nem sequer de ter tido uma festinha ou algo do tipo. Aqueles anos foram difíceis, com sopas cada vez mais ralas e roupas progressivamente mais curtas.
Por mais que Benjamin e eu brincássemos, era notável a falta que outras crianças estavam fazendo em nossa vida. Muitas das brincadeiras de rua precisavam de mais do que apenas dois integrantes para funcionarem, e brincar com os brinquedos que tínhamos em casa havia se tornado monótono. Já éramos crianças de quase oito anos, e o que tínhamos para nos divertir era adequado a crianças de seis.

Estávamos numa típica tarde de outubro de 1940. Meu irmão e eu estávamos entediados, enquanto minha mãe tricotava algumas blusas para o inverno que se aproximava. Meu pai chegou a casa nesse momento, trazendo algumas cartas.
— Oi, querida. Oi, crianças.
Fizemos o ritual de sempre. Porém, ao pularmos em seu colo, ele acabou deixando as cartas que trazia consigo caírem no chão. Adele deixou seus cordões de lado e levantou de onde estava sentada. Foi ao nosso encontro, e recolheu as cartas caídas.
Meu irmão e eu pulamos de seu colo.
Ela bateu o olho no primeiro envelope e logo o abriu. Com um ar sério, leu o papel em alguns instantes, e levantou os olhos para Aaron.
— Querido, tudo bem, vamos dar um jeito. — E abraçou meu pai.
— Mas a demissão não é tudo, querida. Veja as outras cartas.
Adele passou uma por uma, com a mesma expressão séria no rosto. Até que um envelope um pouco diferente dos demais lhe prendeu a atenção.
— Uma carta do governo?
— Sim. Leia.
Ela começou a ler, baixo.
— Informamos que... Mudar... Conjunto Habitacional Judaico... — Seus olhares se encontraram. — Aaron, isso é sério?!
— Nosso vizinho da frente recebeu a mesma carta. E ele também é judeu.
— Mas então... Estão realmente nos obrigando a mudar daqui? Para esse Conjunto Habitacional Judaico?
— E se não nos mudarmos, guardas virão nos buscar.
Meu irmão e eu trocamos um olhar de dúvida.
— Vamos mudar de novo? — Disse ele.
— Para um lugar melhor agora, né? — Complementei.
— Vão se preparando, Benjamin e Caleb. Daqui cinco dias teremos que partir para esse endereço aqui. — E meu pai mostrou o papel com o nome da rua, o número e o apartamento do que seria nosso novo lar.
Benjamin e eu conhecíamos o endereço, já havíamos andando pelos seus arredores algumas vezes.
— Bom — comentou meu irmão —, pelo menos vamos sair dessa casa e respirar uns ares novos.
Diminuindo seu tom de voz de modo que só eu ouvisse, complementou: “Porque eu não aguento mais ficar aqui”.
E de fato eu também não. Não nos havia restado muitas coisas divertidas para fazer: não tínhamos mais dinheiro para andar de bonde, e caminhar sem rumo pelas ruas não tinha mais tanta graça. Nossa última opção, ficar em casa, era entediante para qualquer um, inclusive para Adele, que tinha em seu tricô uma fuga da realidade.
— Caleb — disse meu irmão —, como será que é esse lugar, essa casa, quer dizer, será que é pior que essa?
— Ah, Ben, sei lá. A última mudança que fizemos não foi muito boa não.
— É, foi chata. Nossa casa antes era bem maior que essa aqui.
— Sim. E dessa vez é estranho, a gente está sendo obrigado a mudar daqui...
— Vai ver eles querem judeu longe. — interrompeu.
— Acho que é isso mesmo. — Suspirei. — Mas nosso pai vai dar um jeito de tirar a gente dessa.
— Papai?! — Disse em voz baixa, apenas para mim. — Ele tentou levar a gente pra esse tal de Estados Unidos, e deu tudo errado. Agora a gente tem que se virar pra conseguir dormir todo mundo na mesma cama, se virar pra dividir a comida, se virar pra brincar, pra tudo!
— Você é ingrato, hein?
— É a verdade! Vai dizer que não? Mas... — Ele me olhou com seu semblante de preocupação. — De qualquer jeito, a gente vai continuar junto, né, eu, você, a mãe, o pai...
Antes que eu pudesse responder algo, fomos interrompidos por nossa mãe, que estava na cozinha.
— Meninos, venham comer!
Levantamos no mesmo instante, estávamos famintos.
Não conversamos mais sobre nossa nova mudança. Eu sabia que meu pai estava tentando fazer de tudo, porém uma parte de mim queria concordar com o que Benjamin dissera. Era verdade que nossa situação estava indo de mal a pior.
Mas meu otimismo e esperança fizeram-me acreditar que estávamos indo para um lugar melhor. Naquele mesmo dia começamos a arrumação de nossas coisas.
Na verdade não sabíamos o que esperar, nem o que o destino estava nos preparando nessa nova casa; nessa nova vida.

Por: Vítor Rodriguez Perencine

4 Comentários

  1. Ah meu Deus!!! Agora já era de vez ): poderia torcer pra Irena Sendler aparecer nessa história e salvar as crianças logo ou você vai ser ruim mesmo?

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    1. Vish, a Irena passou longe... a história está só no começo... rsrsrs

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