3

Desembarcamos na grande estação de trem de Varsóvia. Talvez meu senso de grandezas ainda não estivesse muito apurado, por ser uma criança de seis anos, porém eu parecia estar na maior estação de trem que já havia visto. Nunca antes havia visitado aquela cidade; tudo em Varsóvia parecia maior. Benjamin e eu estávamos andando a frente de nossos pais, pois andar lado a lado não seria conveniente se considerarmos o tanto de gente que passava. Ficamos olhando para cima, distraidamente, apenas observando o tamanho de tudo, que até então era novidade.
Tudo estava indo bem, até a hora em que virei para trás para comentar com meu pai o que estava achando daquilo. Mas atrás de nós não havia mais ninguém conhecido. Cutuquei Benjamin.
— Ben, cadê o pai e a mãe?!
Meu irmão se virou e também percebeu que estávamos perdidos. Perdidos no maior lugar onde até então já estivemos.
— Caleb, e agora?!
Ficamos olhando ao redor, tentando encontrar o olhar deles, por minutos; inclusive gritamos os seus nomes. Até que uma senhora nos interrompeu.
— Com licença crianças — disse ela —, vocês estão perdidos? Oh, são gêmeos!
Minha mãe me disse para nunca falar com estranhos. Porém, naquela hora, não houve como não o fazer.
— Sim — disse eu, num leve desespero. — Acabamos de nos perder de nossos pais!
— A senhora pode nos ajudar? — perguntou Benjamin.
— Venham comigo, queridos. — Falou a senhora, com sua voz docilmente gentil. — Oh, não façam essa cara de choro, logo vão encontrá-los.
E não tivemos opção senão seguir aquela moça simpática que estava tentando nos ajudar. Ela nos levou até o que deveria ser uma central, e uma outra mulher de olhos azuis anunciou nossos nomes nos microfones da estação. A senhora gentil ficou conosco, nos cuidando; até que, em menos de cinco minutos, nossos pais apareceram.
— Crianças! — Disse minha mãe, num tom aliviado que foi sendo substituído por certa raiva. — Onde vocês foram? Num momento vocês estavam em nossa frente, e no outro haviam sumido!
— Mãe, aqui é muito grande...
— É... A gente estava olhando pra cima... — Falei, tentando retirar nossa culpa.
— Oh, fico feliz que encontraram seus pais, crianças. — Disse a encantadora senhora. — Boa tarde a vocês.
Meus pais então notaram sua presença.
— Olá — falou Aaron. — Obrigado por ter ajudado. Qual seu nome?
— Sou Aleksandra Wastowski. E com quem tenho o prazer de falar?
— Somos a família Wensel. Sou Aaron, e esta é minha esposa Adele. E estes são meus filhos, Benjamin e Caleb.
— Ah, sim. Tenham um bom dia!
Meu pai não perdeu a oportunidade para pedir informações. Sacou o mapa de seu bolso e começou a falar.
— A propósito, senhora Wastowski, a senhora sabe como chegamos nesta rua aqui?
E então ela nos ajudou a localizar o lugar onde ficaríamos temporariamente em Varsóvia. Ela era uma moradora da cidade, portanto conhecia bem a região. Nós nos despedimos, e, graças àquela intimidade inicial, Aleksandra nos deixou com um leve sentimento de vazio.
Antes que pudesse dizer algo, Aaron já se adiantou.
— Benjamin, Caleb, num instante estavam em nossa frente, e no outro haviam sumido! Vocês não podem nos dar outro susto assim!
Saímos da estação e começamos a andar. Meu pai nos alertou que a caminhada seria um pouco longa, e para nós, crianças, realmente foi. Depois de quase uma hora andando, chegamos a nosso destino, uma pequena residência de tijolos expostos com muito mato crescendo ao redor. A fachada não era algo chamativo, muito menos bem cuidado. Uma pequena cerca de ferro, quase escondida pela vegetação, dividia a calçada pública do terreno. A primeira impressão que tive daquela casa era que ela era mal assombrada.
Adentramos no terreno, andando sobre o que supúnhamos ser o caminho de cimento que nos levaria à entrada. Meu pai abriu a porta de nossa nova casa, e um cheiro de falta de ventilação nos tomou as narinas. As paredes internas eram nuas, e apenas um empilhado de fileiras de blocos separava aquela casa do mundo ao seu redor. A sala de estar também servia de quarto, e na cozinha havia uma porta que provavelmente era a que dava ao banheiro.
Diante a situação, Aaron começou a falar, meio que gaguejando.
— Crianças, Adele, tudo bem, quer dizer, amanhã vou encontrar o rapaz que poderá nos ajudar a sair do país...
— Pois que ache logo — falou minha mãe. — Esse lugar cheira a mofo.
— A outra casa é melhor — disse eu.
— Eu sei, eu sei. Mas fiquem tranquilos, logo estaremos embarcando para os Estados Unidos. Por hora, vamos desfazer as malas.
E o lugar era realmente insalubre. Ainda bem que estávamos numa época não muito fria do ano, pois na casa não havia sistema de calefação. Durante as noites seguintes, meu pai teve que matar alguns ratos que eventualmente apareciam à noite nos armários e que comiam nosso cereal.

Benjamin e eu queríamos explorar as ruas de nossa vizinhança, mas minha mãe não permitiu. Tínhamos apenas seis anos, e a cidade grande era muito diferente do que estávamos habituados em Białystok. Lá, podíamos sair para brincar com nossos vizinhos, cujos pais os meus conheciam também. Nós fazíamos de tudo na rua de nossa casa. Ela não era pavimentada, e em dias de chuva nos divertíamos com a lama. Fazíamos castelos, buracos no chão; uma vez enterramos meu irmão, deixando apenas sua cabeça de fora. Voltamos para casa, e Benjamin estava coberto de lama; minha mãe ficou furiosa diante do fato de que as partes brancas de sua vestimenta jamais voltariam a ser o que eram.
Naquele primeiro dia na nova cidade, minha mãe resolveu sair de casa para conhecer os arredores e os  vizinhos, e nós dois fomos junto. Nossa casa ficava na periferia; portanto, para chegar ao centro da cidade, fizemos uma boa caminhada. O centro ficava do outro lado do rio Vístula. Mas valeu a pena, adoramos o lugar. Era movimentado, cheio de edifícios que as pessoas entravam e saíam. A área residencial de lá também era charmosa: contava com pequenos prédios de alguns andares, bem como calçadas largas. Para nós, crianças, tudo era uma incrível novidade. Uma mudança para uma cidade daquele tamanho significava muito.
Conhecemos a senhora Kamilia e seu marido Olek, um casal de idosos que morava na casa ao lado da nossa. Kamilia nos disse que seus netos passariam alguns dias em sua casa, e que eles tinham a mesma idade que meu irmão e eu. Ela nos convidou para passar uma tarde em seu quintal para brincarmos com eles, assim que chegassem.
Também fizemos contato com Alojzy e Magda, vizinhos de frente. Era um casal que tinha dois filhos, alguns anos mais velhos do que nós dois. Sua casa era espaçosa, possuía um ambiente muito agradável.
Minha mãe, Benjamin e eu voltamos para casa, com muitas novidades para compartilhar com meu pai na hora que ele chegasse. Ele estava fora de casa, procurando pelo então sujeito que nos forneceria meios de fugir do país.
Adele tinha acabado de cozinhar a janta quando meu pai adentrou em casa. Ficamos felizes em vê-lo; todavia, ele parecia desapontado.
— Aaron! — Adele foi ao seu encontro, Benjamin e eu também.
— Benjamin! Caleb! Oi crianças, oi querida!
Como de costume, nós dois pulamos em seu colo.
— Querido, como foi hoje? O que houve?
— Pois bem. Não consegui achar o tal homem. Parece que ninguém o conhece por aqui.
— E se esse sujeito estiver na cadeia por causa dos contrabandos? Aaron, isso é possível!
— Fique tranquila, ele tem seus jeitos. Tenho quase certeza de que ele está em algum lugar por aí. Amanhã vou continuar a busca.
E foi o que fez. Mesmo dormindo em uma cama apertada, numa casa que exalava um terrível odor de mofo, e tendo que ocasionalmente assassinar roedores, meu pai continuou forte e determinado em sua tarefa.
Porém, o dia seguinte também não foi muito promissor. Nem o próximo.
Até que, no fim de agosto, Aaron conseguiu algumas informações sobre o paradeiro do contrabandista, informações suficientes para descobrir onde morava. Entretanto, numa manhã de Setembro, um grande incidente aconteceu.
Estávamos tomando café da manhã, e meu pai ouvia o rádio. Benjamin e eu estávamos já nos preparando para ir à casa de Kamilia, pois seus netos haviam chegado na noite anterior e iríamos conhecê-los naquele dia. Estávamos fazendo planos, porém meu pai pediu para ficarmos em silêncio. O locutor do rádio parecia dizer algo importante. Eu não entendia muito bem o que o som que saía queria dizer, mas sei que nunca havia visto meu pai tão preocupado ao ouvir as notícias.
— Adele...
Minha mãe compreendeu sua expressão.
— Não...
— Sim, está acontecendo.
— Crianças, por que não vão brincar na sala?!
Por imposição de nossa mãe, mudamos de cômodo.
— Que estranho nosso pai hoje, não é? — Perguntou Benjamin, enquanto procurava pelo seu boneco de super-herói favorito.
— Eu acho que tem alguma coisa diferente acontecendo.
A partir daí, não sei o que os dois conversaram, pois Benjamin e eu começamos a fazer o que sabíamos de melhor: brincar. Só recordo de, não muitos minutos depois de termos iniciado a brincadeira, ter ouvido uma sirene tocando lá fora. Após alguns minutos de tensão, uma bomba explodiu em algum lugar próximo de nossa casa.
Todos nós estremecemos. Meus pais tentaram manter meu irmão e eu seguros, embaixo de seus braços. Não havia muito que fazer. E outra bomba havia explodido; e outra, e outra; uma chuva delas. A invasão nazista chegara a Varsóvia. Olhei para Benjamin, e pude ver que, assim como eu, meu irmão estava com muito medo, coisa rara de ver em seus olhos.
Acabamos não saindo de casa naquele dia. Muito menos no outro. Nem nos seguintes. Havia tréguas, mas os bombardeios continuaram por vários dias. Meu pai também não se atrevia a sair de casa, o risco de ser morto por uma bomba repentina era grande.  Passamos a viver temerosos, esperando pelo próximo susto, rezando para que nossa casa não fosse explodida. Passado o ataque inicial, nos habituamos ao significado daquela sirene. O toque de recolher acontecia alguns minutos antes de cada bombardeio, e todos residentes das proximidades, inclusive nós, nos reuníamos no porão da casa de alguém cuja capacidade de pessoas era alta. Geralmente íamos para a casa à frente, Alojzy e Magda, cujo subsolo cabia várias pessoas. Seguros em seu interior, ouvíamos as bombas explodindo na superfície, todos na expectativa de sua casa não ter sido a atingida.
Nós tivemos sorte de nossa residência ter continuado intacta.  A cada ataque, a insegurança crescia mais, e não era difícil encontrar pessoas que passaram a ser sem teto após bombas explodirem seus lares.
Conhecemos os netos da senhora Kamilia em um dia de bombardeio, no mesmo porão que sempre íamos. Eram três garotos e duas garotas, todos entre seis e oito anos. Um ótimo passa tempo era ouvir as histórias do velho Olek, veterano de guerra que sempre tinha o que contar. Ele reunia as crianças de todas as idades e assumia o posto de contador de histórias. Ora contava uma história engraçada, ora um conto de botar medo, que ele jurava ter acontecido enquanto morava numa fazenda do interior. As histórias teriam sido muito mais divertidas se não estivessem sendo contadas enquanto bombas assolavam a cidade de Varsóvia, mas aqueles momentos, embora fossem de tensão, acabaram se tornando um motivo para sairmos de casa e da realidade e viajar no que Olek dizia. Essa era a parte boa da época dos bombardeios. Repassei aos meus filhos suas histórias.
Era visível que meu pai não dormia bem há várias noites; haviam olheiras postadas abaixo de seus olhos claros, que cresciam a cada dia que passava. Mas ele não estava derrotado. No meio daquele mês de setembro, Aaron resolveu sair as ruas em sua infindável busca por aquele contrabandista, mesmo com os evidentes riscos de um bombardeio desavisado tirar-lhe a vida.
Minha mãe ficou apreensiva o dia todo. A corajosa senhora Wensel apresentou sua rara expressão de preocupação, a qual só vira tomar conta de seu rosto em pouquíssimas ocasiões. Sua feição apenas mudou quando meu pai abriu a porta, adentrando em casa em tom fúnebre.
— Aaron! Você está péssimo, o que aconteceu? O tal rapaz cobra um preço por pessoa maior do que a gente estava imaginando?
— Pior que isso. — Meu pai suspirou. — Durante os bombardeios, bem, ele não se atentou ao toque de recolher, e ficou em pedaços... Junto com a casa dele.
— Oh, não...
Benjamin tomou a palavra.
— Então não vamos mais pra outro país?
— Ben, não foi isso o que quis dizer... Ora, por que vocês dois não voltam a brincar?!
— Tá bom, pai — respondeu meu irmão.
Então voltamos para o que já estávamos fazendo. Cada um com seu brinquedo de super-herói, inventando uma história para fugir da realidade que nos cercava. Nossos pais foram para a cozinha, a fim de terem uma conversa particular. Não havia como espioná-los; eles nos veriam caso tentássemos nos aproximar. Desistindo dessa ideia, voltamos a nos divertir, inocentes perante a situação.
A verdade é que, sem o contrabandista para nos tirar do país, não havia como sair do lugar onde estávamos. A casa que ficaríamos apenas temporariamente houve de se transformar em nossa residência fixa. Éramos apenas mais uma família ali, dentre tantas outras que estavam prestes a ceder na armadilha do Holocausto.
A verdade é que estávamos sem saída. A esperança de fugir da Polônia caiu por terra, bem como as bombas, que insistiam em nos atormentar.
Nosso cenário havia mudado. A luta agora não era mais pelas fugas, e sim pela sobrevivência.

Por: Vítor Rodriguez Perencine

Deixe um comentário