Eu e Benjamin ganhamos alguns brinquedos de aniversário. Nossa família estava ficando meio que sem dinheiro, portanto eles eram dos mais simples.
A primavera de 1938 já estava quase chegando, trazendo cada vez mais tensão dentro de nossa casa. Meus pais discutiam quase que uma vez por semana, coisa que antes não estavam habituados a fazer.
Um dia, não sei dizer exatamente qual, estávamos travando uma luta com nossos bonecos de super-heróis, como sempre fazíamos; porém algo interrompeu nossa brincadeira. Do nosso quarto, que não era muito longe do quarto dos nossos pais, foi possível ouvir uma nova discussão. Benjamin e eu não tardamos em trocar um olhar curioso, o que nos fez ir até a porta do quarto dos nossos pais e tentar ouvir o que estava sendo dito.
Benjamin aproximou o ouvido do canto da porta, enquanto eu olhava pela fechadura. Eu não consegui capturar muitas cenas do interior do quarto, mas pude perceber que minha mãe estava sentada na cama e meu pai caminhava ao redor dela.
— Adele, Hitler está levando seu povo a odiar qualquer um que não seja alemão. Nós, judeus poloneses, estamos inclusos nessa! Olha o que ele está fazendo lá na Alemanha, leia esse jornal!
— Isso mesmo, ele está fazendo essas coisas na Alemanha! Aaron, estamos na Polônia, e esse Hitler não invadiria nosso país aqui.
— A Polônia é fraca com relação a exércitos, Adele. Ele vai invadir o mundo todo, e vai começar por aqui. Já lhe disse isso mil vezes. Nós vamos nos mudar e ponto final. É isso ou a morte!
— Ah, ótimo, vamos fugir como ratos! Você pelo menos sabe para onde ir? E como chegar lá?!
— Já falei sobre aquele contrabandista que vive em Varsóvia, Adele, não se faça de desentendida. Ele pode nos ajudar a fugir do país, e vamos para um lugar seguro, como os Estados Unidos.
— Então é isso?! Vamos nos mudar?! Pense no meu emprego, Aaron, na vida das crianças aqui! Não vou ser capaz de jogar tudo isso fora por causa de tal suposição que o chanceler da Alemanha vai invadir a Polônia!
— Adele, e se invadir? E isso está claro q vai acontecer. Não sabemos do que esse homem é capaz!
Eu e Benjamin estávamos ficando eufóricos. A única parte que entendemos dessa discussão foi que precisávamos nos mudar para outro lugar.
— Adele, estamos correndo muito perigo! Precisamos nos mexer... — Meu pai foi interrompido pelo barulho do meu joelho se batendo contra a porta, acidentalmente. — Espere... Parece que tem alguém na porta...
Ao ouvir a fala de meu pai, corremos de volta ao nosso quarto. Ouvimos, então, a porta do quarto deles se abrir, e alguém começou a caminhar em direção ao nosso.
— Caleb, Benjamin, o que estavam fazendo ouvindo atrás da porta?! — Falou nossa mãe, de braços cruzados. — Que falta de educação!
Porém, atrás dela, veio também nosso pai.
— Que bom que estavam ouvindo a discussão. Ben, Caleb, precisamos falar sobre a nossa mudança.
— Aaron, nós ainda não decidimos isso!
— Então a gente vai se mudar? — Perguntou Benjamin.
— Ben, tem um cara muito mau que está prestes a invadir nosso país. — Falou meu pai, cruzando os braços, como se quisesse dizer aquilo mais para minha mãe do que para nós. — Precisamos ir embora daqui antes que isso aconteça. E eu conheço um homem que pode nos ajudar com isso.
Adele começou a ficar nervosa.
— Não fale como se quisesse colocar as crianças contra mim, Aaron! É muito cedo para decidir isso!
Minha mãe saiu do quarto, nervosa. Meu pai foi atrás dela.
— Ben, Caleb, não fiquem ouvindo atrás da porta de novo. — E saiu.
Eu e Benjamin ficamos sem muitas palavras.
— Seja lá o que eles quiserem — pronunciou Benjamin —, eu não quero me mudar daqui.
— Nem eu.
Benjamin e eu passamos as próximas semanas sem muitas notícias se íamos realmente nos mudar. E os próximos meses também. Tudo o que sabíamos era que nossos pais continuavam a discutir, entretanto de forma cada vez mais branda. Já até tínhamos esquecido essa história sobre a mudança, até que, já no ano seguinte, no começo do verão de 1939, Aaron retomou esse assunto.
Era quase noite, e nossa mãe havia acabado de preparar seu tradicional prato, Pierogi. Ela, meu irmão e eu já estávamos na mesa, porém meu pai continuava em seu escritório.
— Aaron! — Gritou minha mãe. — Pela terceira vez, o jantar já está na mesa!
Dado por vencido, meu pai abriu a porta de sua sala particular e sentou-se conosco à mesa. Adele olhava para ele fixamente, com um ar de estressada, de modo como se esperasse que algo saísse de sua boca.
— Bom, já está na hora de vocês saberem, crianças — finalmente disse ele. —Vocês se lembram daquela conversa que eu e a mãe de vocês estávamos tendo ano passado, aquela que vocês ouviram de trás da porta?
Nós acenamos que sim.
— Pois bem. Nós realmente nos mudaremos. — Falou, com seu tom salpicado de drama. — Vamos sair da Polônia.
Benjamin e eu nos entreolhamos, já sabendo o que dizer.
— Mas a gente não quer se mudar daqui! — Falou meu irmão.
— Essa casa é legal, e a gente tem vários amigos na rua. — Disse eu.
Meus pais entreolharam-se como se estivessem conversando telepaticamente.
— Crianças, nós não estamos pedindo opinião — retrucou minha mãe.
— Sim — arriscou meu pai. — Pensei bastante sobre isso e...
— Nós, Aaron, nós pensamos na mudança e chegamos nessa conclusão — interrompeu. — Vamos nos mudar no fim do verão.
— Mas mãe!
— Sem mais. Acabem de comer e já vão começar a arrumar suas coisas, pra não deixar tudo para última hora.
E então nos demos por vencidos; sabíamos que com nossa mãe não se tinha muita conversa.
Na verdade, demoramos alguns dias mais para começar a fazer as malas, e ela nos ajudou a empacotar as coisas. Quanto mais guardávamos roupas e brinquedos, mais eles apareciam no armário; era um ciclo sem fim. Mudanças não são fáceis, principalmente aquelas que devem ser feitas às pressas.
Já estávamos no último dia de agosto quando Aaron chegou em casa com bilhetes de trem para Varsóvia. Quatro, no total. Ele disse que a viagem seria aquela noite, portanto já deveríamos começar a nos aprontar para sair.
Todas as malas enfim prontas, todas as lembranças daquela residência enfiadas dentro de uma caixa de lona com rodinhas. Já fora da casa, olhei para trás e contemplei o lugar onde havia sido criado até então, sentindo um aperto por estar, grosso modo, deixando aquele lugar no passado.
Um carro emprestado nos levou até a estação de trem de Białystok. Podendo contemplar o horizonte apenas da janela, fomos nos despedindo de cada esquina, de cada casa, de cada jardim. Benjamin e eu conseguimos ver alguns de nossos amigos pelas ruas, brincando, mas passamos rápido demais para sermos notados. Já havíamos-lhes notificado da nossa partida, e tínhamos feito as devidas despedidas.
A estação não era muito grande, nem coberta. Porém, estava bem movimentada no dia. Muitos estavam com pressa. Por termos chegado cedo, tivemos que esperar quase uma hora pela chegada do trem. Uma fila foi feita para entrar no vagão 6, fila a qual andou rápido, e logo entramos. O trem estava abafado por ser uma típica tarde de verão.
Assistimos da janela a cidade ficando para trás; tudo o que eu conhecia e tudo o que eu havia vivido estava perdendo-se em meio ao horizonte. Mal sabíamos nós que aquela viagem mudaria o rumo de nossas vidas para sempre.
Por: Vitor Rodriguez Perencine
Espero que meus pressentimentos estejam errados 😦
ResponderExcluirManda mais, Vítor!!!