5

Levantei mais cedo do que o normal. O excesso de movimento de meus pais desde o início da manhã impediu-me de continuar dormindo. Benjamin, que estava à esquerda, ainda dormia, mas logo havia de despertar também.
Meus pais estavam conferindo os últimos detalhes de nossa mudança. As malas já estavam prontas, aguardando-nos próximas à porta de entrada. Assim como nós, mal podiam esperar para saírem daquela casa.
Foi após o singelo café da manhã que a ansiedade tomou conta. Fomos saindo, como se nunca houvéssemos pertencido àquele lugar. Não fiquei triste por estar deixando aquela residência, e parecia que todos também estavam um tanto indiferentes. Pegamos as malas, cada um carregando ao menos duas ou três delas. Atravessamos a porta da sala e o jardim de entrada, que por sua vez contava com um gramado bem cuidado e um caminho cimentado visível. Minha mãe gostava de jardinagem, e, quando não estava tricotando, empenhava-se em cuidar das flores que plantava em seu modesto quintal, aparando o mato e retirando ervas daninha. Em sua mala, trazia alguns vasos vazios, a fim de também cultivar algumas plantas em nossa nova casa.
Cruzamos o portão, o qual também estava em melhores condições do que quando chegamos naquele lugar, há dois anos. Permiti que um leve sentimento de vazio aflorasse, pois, querendo ou não, havíamos construído muitas memórias ali. Mesmo que Benjamin e eu estivéssemos nos sentindo sozinhos havia mais de um ano, as lembranças iniciais de uma Varsóvia onde todos podiam interagir sem problemas foram as que ficaram gravadas em nossas mentes.
Já havíamos dado voltas pelo bairro que estávamos nos mudando, mas nunca tínhamos ido andando. Se a viagem de bonde já era um pouco longa, a viagem a pé deveria demorar muito mais. Entretanto, não havia outro modo de chegar ao destino senão este, uma vez que não dispúnhamos de carro ou dinheiro.
Já havíamos completado meia hora de caminhada quando paramos para descansar um pouco, na calçada mesmo. As malas pesavam bastante, tudo o que possuíamos estava ali. Na verdade, quase tudo, pois algumas coisas tiveram que se deixadas para trás; não seria possível carregar, por exemplo, todas as roupas e brinquedos que possuíamos. Porém, naquele momento, nossa sorte mudou.
— Querem uma carona? Temos uns lugares sobrando aqui.
Nosso ex-vizinho da frente, Alojzy, apareceu a nossa frente numa carroça, que também carregava sua esposa Magda e seus dois filhos adolescentes, além de sua bagagem. Aceitamos a carona sem hesitar, e a viagem então tornou-se confortável e até divertida.
Em uma hora estávamos no lugar desejado, situado próximo ao centro da cidade. Era um prédio aparentemente comum que possuía quatro andares. Muitas pessoas andavam nas calçadas, todos estavam de mudança. A carroça parou na frente do lugar. Após agradecer a carona, meu pai perguntou:
— Mas.... Como sabem que é aqui que minha família vai morar? Não demos o endereço do apartamento, como adivinharam?
— Vocês ficarão aqui? Ora, é neste prédio que eu e minha família vamos morar também. — Disse Alojzy.
— Portanto seremos vizinhos novamente? Que engraçado! Em qual andar vocês vão morar?
Neste momento, já havíamos desembarcado da charrete, e ambos os pais de família recolhiam as malas.
— Vamos nos alojar no terceiro. E quanto a vocês?
— Nós também — disse Aaron. — Quanta coincidência.
Subimos as escadas, todos indo à mesma direção. Aaron tomou a iniciativa de abrir a porta do apartamento 34, mas Alojzy fez o mesmo.
— Não digam que vão morar aqui também.
A situação passou de extrovertida para estranha. Após terem a certeza de que as documentações diziam que teríamos que morar no mesmo apartamento, Aaron e Alojzy, naquele mesmo dia, resolveram ir falar com as autoridades a fim de que aquele suposto erro fosse corrigido. Ficamos esperando dentro do apartamento, conhecendo seus cômodos. Não era nada modesto: possuía três quartos, um banheiro, uma bela varanda com vista para rua. O ambiente da sala de estar dividia-se com a copa, sendo que na cozinha também havia uma mesa.
Minha mãe e Magda ficaram na sala de estar, compartilhando informações sobre tricô, enquanto Benjamin e eu nos aproximávamos de seus dois filhos, algo que nunca havíamos feito. Eles não costumavam falar muito, por isso mal sabíamos seus nomes. Em se tratando de socialização, meu irmão se dava melhor, portanto foi ele quem conseguiu criar amizade de primeiro momento. O mais velho chamava-se Petroski, e tinha 18 anos. O mais novo era Andrzej, com 16.
Após algumas horas, Aaron e Alojzy voltaram desesperançados. As informações escritas estavam corretas: teríamos que viver todos juntos; todos os oito integrantes das duas famílias debaixo do mesmo teto.
— Mas o quê?! —  Revoltou-se Adele. — Como assim eles mandam as pessoas saírem de suas casas para amontoar todo mundo num apartamento?!
— Adele, — pronunciou meu pai, — não levante seu tom de voz assim comigo. São as ordens, ora, o que você queria que tivéssemos feito?!
— Então você aceita isso, Aaron? — Disse minha mãe, extremamente enérgica. — Aceita se sujeitar a qualquer ordem desses idiotas??
— Vá lá você contestar, então! De brinde você ganha um tiro na testa!
Ela se retirou para o quarto, nervosa. Meu pai ficou desnorteado, e Alojzy tentou mostrar que aquela nova situação não seria tão ruim.
Para nossa sorte, aquele apartamento era espaçoso, e não teríamos muitos problemas relacionados a desconforto. Mas continuávamos sendo duas famílias diferentes, com hábitos distintos.
Naqueles primeiros dias, as ruas estavam cheias de pessoas. O caos estava tomando conta daquele lugar. Assistíamos a tudo isso de nossa varanda, que possuía uma visão privilegiada da rua. Muitas pessoas estavam se mudando ao mesmo tempo, e, ao que nos parecia, não caberiam tantas pessoas assim em todas aquelas casas.

Após dois dias na casa nova, alguém bateu na porta. Alojzy abriu, e um casal de idosos com uma filha e um genro, ambos aparentemente em seus vinte anos, apresentou-se. Após as formalidades, deram a notícia de que teriam que morar naquela residência conosco. Ao menos era o que os documentos diziam.
Minha mãe não estava de acordo, mas não houve outra maneira senão aceitá-los. O apartamento já estava cheio antes de sua chegada, e agora ficara lotado. Cada quarto, portanto, ficou para uma família, cada uma acomodando-se do jeito que conseguia.
Todas as doze pessoas ali morando faziam com que o apartamento, que outrora fora espaçoso, parecesse ser um cubículo. Tivemos que aprender a ser pacientes uns com os outros. Cada um tinha maneiras diferentes de fazer as coisas, mas de um modo geral acabamos nos dando bem.
A família de Alojzy era recatada. Com o passar das semanas, os assuntos das conversas de minha mãe e Magda foram se esgotando, como se já estivessem tediosas com relação à situação que estavam. Benjamin e eu estávamos perdendo o tênue contato que tínhamos com os irmãos filhos de Alojzy; eles não interagiam muito com “crianças” como nós. Estavam sempre conversando entre si ou com a mãe, Magda.
O que nos dava alegria naquele lugar era o jovem casal. Viemos a descobrir seus nomes: Ewa, a esposa, e Antoni, o marido. Amantes de crianças, estavam sempre tentando nos distrair da realidade a qual estávamos inseridos. Enquanto ela lia para nós histórias que ela mesma havia escrito em um livro de contos para crianças, ele fabricava pequenos brinquedos com o que achava pelas ruas do gueto, como carrinhos e caminhões pequenos feitos de pedaços de madeira e de ferro.
Enquanto o nosso mundo infantil escondia a realidade, as coisas estavam ficando ruins. Era-nos dado uma espécie de cesta básica por estarmos vivendo no gueto, porém a quantidade de comida fornecida por mês não era suficiente para matar nossa fome. Meu pai continuou tentando achar trabalho, embora fosse mais difícil conseguir empregar-se no lugar e na condição que estávamos.
A nossa situação mudou de figura quando construíram um muro ao redor do gueto, ainda naquele ano de 1941. Ninguém entrava, ninguém saía, senão oficiais ou pessoas autorizadas. Não era mais possível arranjar alguma fonte de renda.
Não demorou muito para que a quantidade de pessoas esfomeadas aumentasse, ajudando para que a situação se tornasse caótica. Era raro achar crianças brincando nas ruas, tanto quanto encontrar sorrisos nos rostos das pessoas. Mas essa condição não ficaria assim para sempre. Gradativamente, pequenas apresentações artísticas começaram a acontecer em diferentes locais, como teatros e galpões. As instalações eram das mais simples, mas não seria isso que tiraria o prazer da população de divertir-se por alguns momentos.
Óperas, musicais e peças de teatro começaram a ser assistidas até mesmo pelos alemães. O fato é que as pessoas precisavam se distrair do que estavam acontecendo, precisavam de um motivo para viver plenamente enquanto possuíam condições físicas para tal.
Meu pai, não perdendo a oportunidade, mudou sua visão sobre como conseguiria um sustento extra. Graças a sua antiga profissão de professor, Aaron, munido de uma ótima memória, conseguia lembrar e recitar diversos poemas de grandes autores da humanidade.
Ele começou a recitar poemas em palcos quando conseguia uma vaga em algum. Meu pai foi capaz de apresentar para várias plateias, que, em sua maioria, continham nazistas. Quase sempre acabava ganhando alguns alimentos, como geleias, pão, leite; ou até mesmo itens de higiene, como sabão.
Enquanto isso, Adele também estava buscando meios de ocupar seu tempo. Haviam instalado um hospital voluntário improvisado localizado algumas ruas acima da nossa, o qual minha mãe resolveu ir trabalhar. Diferentemente de Aaron, ela não ganhava nada pelo o que fazia; pelo menos eu e Benjamin nunca a víamos chegar com algum embrulho sob seus braços. Mas, naquele lugar, se você não fosse parte de alguma coisa, se você não fosse útil para algo, acabaria enlouquecendo; trabalhar ajudando pessoas era o jeito dela de manter-se sã.
A demanda de alimentos e remédios não era atingida, e o contrabando contribuía para que essa falta não fosse tão grande. Minha mãe dizia que só por baixo dos panos era possível conseguir medicamentos para os enfermos, caso contrário a taxa de mortalidade seria ainda maior. Muitas vezes, uma simples gripe levava o indivíduo ao óbito por pura falta de higiene e medicação.
Ela não deixava que Benjamin e eu fôssemos consigo em seu trabalho, por ser um lugar um tanto insalubre. Aaron, entretanto, permitia que nós o acompanhássemos em suas apresentações, que aconteciam uma vez a cada um ou dois meses.
Pouco a pouco, suas exposições foram ficando mais elaboradas, graças a nossa ajuda e a do casal que morava conosco, que eram ótimos artistas. Meu pai foi deixando de recitar grandes obras e passou a narrar histórias fantásticas ou de suspense. Houve uma época que desenvolvemos uma novela, contada ao público todas as tardes de sexta feira durante um mês. Meu pai escrevia um episódio por semana e, enquanto lia, o casal aplicava alguns efeitos especiais, como barulhos, com materiais que dispúnhamos. Chocalhos de areia, placas de metal e outros objetos ajudavam a dar vida à narrativa, e o público vibrava.
Enquanto minha família tentava ser produtiva, Magda, esposa de Alojzy, ficava em casa o dia todo. Ela nunca teve uma profissão, o que contribuía para que não conseguisse alguma forma de sustento. Alojzy, por sua vez, saía de casa todas as manhãs, mas não chegamos a saber o que fazia o dia todo nas ruas. Haviam dias que ele chegava no apartamento no meio da tarde, e outros que, de madrugada, ele ainda não havia chegado; ao chegar, entretanto, era notável que estava alcoolizado.
Os idosos, pais de Ewa, não possuíam nenhuma ocupação, assim como Magda. Porém, eles gostavam de cuidar das plantas de minha mãe. Ela havia trazido oito vasos de nossa antiga casa, e cada um possuía algum legume ou flor plantado. Os legumes e flores cresciam viçosos, graças à ajuda desse casal. Mal podíamos esperar eles ficarem maduros, pois comeríamos algo diferente de pão e batatas.
Certo dia, em um típico anoitecer de sexta feira, um acontecimento quebrou nossa rotina. Havíamos acabado de chegar de uma apresentação, e meu irmão e eu estávamos na sala enquanto nosso pai organizava suas coisas em nosso quarto. Todos os residentes do apartamento estavam lá, menos os filhos de Alojzy.
Conversávamos com Ewa quando Andrzej, o filho mais novo, irrompeu a calmaria. Escancarando a porta violentamente, parecendo estar desnorteado, gritou pelo pai, que saiu de seu quarto e veio rapidamente ao seu encontro.
— Pai... — disse, abraçando-o fortemente e soluçando. — Petroski... Os soldados levaram ele!
Ele só chorava. De primeiro momento, foi difícil cair a ficha do que estava acontecendo. Magda apareceu, e seu jeito calmo e elegante de ser logo deu lugar ao desespero.
— Como assim, Andrzej?! Levaram? Levaram ele para onde?
A pobre mulher estava se descabelando enquanto Andrzej tentava contar o ocorrido. Pelo o que foi possível saber, Petroski e ele estavam caminhando pela calçada quando foram abordados por nazistas. Andrzej nos disse que podia sentir o cheiro de álcool proveniente daqueles homens. Após falarem algumas frases em alemão que os irmãos não puderam entender, um dos guardas apontou para Petroski. Os outros guardas fecharam-no em uma roda e começaram a caçoá-lo e a bater-lhe. Andrzej tentou ajudar o irmão a todo custo, sem sucesso. Eles começaram a andar, levando Petroski, enquanto Andrzej tentava evitar. Um dos nazistas apontou uma arma para sua cabeça e mandou que fosse embora imediatamente, ordem que só obedeceu quando ouviu o irmão gritar “corra! Eu vou dar um jeito! ”. E eis que, enfim, voltou correndo ao nosso apartamento.
— Não pode ser! — Gritou Magda. — Para que direção ele foi, Andrzej, diga! Vou atrás do meu filho!
Após dizer que eles haviam levado Petroski para além dos portões do gueto, ela desceu as escadas correndo, pois queria tentar salvar o filho. Não havia quem parasse aquela mulher. Alojzy tentou acompanhá-la. Quando se trata de filhos, as mães tornam-se inconsequentes. Adele, que também estava ali ouvindo o relato, ficou estarrecida com a situação. Ela abraçou eu e Benjamin fortemente.
— Filhos, meus gêmeos, ainda bem que estão aqui, sãos e salvos... eu não sei o que seria de mim se isso o que aconteceu com o filho de Magda acontecesse com um de vocês.... — Ela olhou em nossos olhos. — Fiquem longe desses nazistas, hein?
Começamos então a realmente temer aqueles homens uniformizados. Não imaginávamos que esse tipo de situação pudesse acontecer a pessoas próximas.
Magda nunca mais veria seu filho novamente.
Meu pai, a partir de então, só permitia que o acompanhássemos em apresentações diurnas. Caso contrário, deveríamos ficar em casa, pois, pelo o que pudemos perceber, ao entardecer estávamos mais suscetíveis a sofrer abordagens.
Estávamos, pouco a pouco, encarando a condição exploratória a qual estávamos sendo submetidos. Progressivamente estávamos nos adaptando aquela nova subvida, embora fosse difícil aceitar; principalmente para pessoas como minha mãe, polonesa antiga de cabeça dura e determinação.
Todos chegávamos a um questionamento: até quando aquela situação ridícula e caótica se estenderia?

Por: Vítor Rodriguez Perencine.


4

Acredito que já estávamos em outubro quando bombas pararam de cair, o que tirou dos meus pais o constate medo de ficarmos desabrigados, ou pior: de perdermos a vida. Mas outra questão veio à tona.
O plano de meu pai de abandonar o país havia ido por água abaixo, embora toda sua especulação de que Hitler invadiria a Polônia estivesse certa. Agora ele estava desempregado, com uma família para sustentar numa cidade onde não conhecia nada. Pelos anos seguintes, o dinheiro que Aaron havia guardado para pagar nossa fuga acabou servindo como uma fonte monetária finita para sobrevivermos. Tínhamos que usar o mínimo possível desta poupança até que Aaron conseguisse se estabilizar em um emprego.
Como se não bastasse todos esses receios, bem como a insegurança, uma coisa que jamais fora motivo de preocupação, pelo menos para meu irmão e eu, começou a nos perturbar. Ora, Varsóvia agora era dos alemães; eles que ditavam as novas regras, as novas imposições, e nossa origem passou a ser mais importante do que nossa dignidade.
Benjamin e eu sabíamos que éramos judeus, e na verdade não dávamos muita importância a isso. Não éramos praticantes, portanto nosso estilo de vida se assemelhava bastante com o dos nossos amigos de outras religiões. Embora tivéssemos descendência judaica, continuávamos sendo humanos; mas isso não estava claro para os nazistas.
Com certa frequência, víamos manchetes indignantes nos jornais. De semana a semana, os judeus estavam proibidos de realizar alguma tarefa pública. Não demorou muito para que fosse proibido visitar certos lugares, como praças, parques. Não tardou a entrar em vigor, também, a lei que nos proibia de utilizar transporte público, tal como trens e bondes. Em novembro daquele ano, judeus que fossem maiores de doze anos, ao saírem nas ruas, eram obrigados a ter costurado em sua vestimenta a estrela de Davi, a fim de uma imediata identificação racial. Tal estrela tinha um padrão de cor e tamanho, e deveria ser comprada do Conselho Judaico, órgão criado pelos nazistas que tratava de assuntos como este.
Algo estranho começou a acontecer. Mesmo após os netos de Kamilia e Olek terem partido, Benjamin e eu continuamos frequentes em sua casa, assim como algumas outras crianças moradoras daquela rua. Eles adoravam nos receber, e Olek sempre tinha algo novo para contar.
Porém, passado alguns meses, após o anúncio de todas aquelas diretrizes, as pessoas começaram a olhar diferente para nossa família. Nossos vizinhos idosos tratavam as crianças não judias melhor do que nós. Kamilia preparava doces e bolos que só alguns poderiam comer, enquanto eu e meu irmão apenas olhávamos, impedidos de saciar nossa vontade.
Adele ficou irada com tal fato, e no mesmo dia foi “ter uma conversa” com eles. Ficamos em casa, esperando-a e ouvindo através da parede a briga feia que estava acontecendo. Após algumas horas, Adele abriu a porta da sala furiosa.
— Crianças, vocês nunca mais vão voltar naquela casa de velhos desgraçados.

Nós estávamos presos em Varsóvia, não tendo para onde ir. Os meios de transporte não nos eram permitidos mais. Mas se bem que, caso quiséssemos utilizá-los, não tínhamos qualquer destino. No decorrer daquele próximo ano que ficamos naquela casa apertada, provaríamos de uma realidade que jamais havíamos presenciado.
Assim como tudo estava saindo do que meus pais haviam planejado, as pessoas que antes conhecíamos (como nossos vizinhos) agora fingiam que nós não existíamos. Era como se, na verdade, nunca houvéssemos existido.
Meu irmão e eu já tínhamos sete anos e meio, e com certa frequência saíamos de casa para dar uma volta. Os amigos que fizemos em Varsóvia fingiam não nos conhecer mais, portanto íamos apenas nós dois em nossos passeios. A parte boa de sermos novos era que não precisávamos usar a estrela de Davi em nossa roupa, obrigatória apenas para maiores de doze anos, então ninguém implicaria conosco caso quiséssemos fazer algo proibido a judeus. O fato de que não aparentávamos ser judeus dava-nos mais asas. Nossos olhos claros ajudar-nos-iam a passar por cidadãos poloneses “puros” facilmente. Divertíamo-nos dando voltas nos parques e sentando em seus bancos. Quando tínhamos dinheiro, andávamos de bonde pela cidade, sem que ninguém nos impedisse. Claro que só fazíamos tais coisas quando não havia ninguém conhecido por perto; caso contrário, corríamos risco de sermos denunciados.
Enquanto achávamos meios de nos divertir, nosso pai buscava condições de sobrevivência. Não sabíamos por quanto tempo sua reserva de dinheiro, que outrora fora destinada a pagar o contrabandista, duraria. Ele precisava de um emprego, e rápido. Sua sorte era que tinha uma boa formação acadêmica, e poderia trabalhar com algo relacionado à literatura.
Mas não foi o que aconteceu. Ninguém queria contratar um judeu como professor de alguma coisa. Ele também tentou vários outros empregos, sem que o aceitassem. Meu pai chegou a conseguir alguns trabalhos, mas logo era demitido, pois estava “tomando o lugar de um não judeu” onde estava trabalhando.
Meus pais se trancavam no banheiro para discutirem, enquanto Benjamin e eu ouvíamos do lado de fora. Acredito que eles tentavam evitar brigar na frente dos filhos, mas de nada adiantava, pois sempre encostávamos nossos ouvidos na porta para não perder nenhum detalhe ou argumento das discussões. Elas, em sua maioria, eram sobre os mesmo assuntos: ou minha mãe que estava “gastando” muitos ingredientes no preparo dos alimentos, colocando muitos legumes na sopa, ou meu pai que não estava conseguindo arranjar um emprego que nos sustentasse, pois não era possível saber até quando usaríamos sua reserva de dinheiro, que uma hora ou outra acabaria. Adivinhem: minha mãe sempre ganhava as discussões.
E isso refletia em nosso dia a dia. Em nosso aniversário de sete anos, não me recordo de ter ganhado algum presente, nem sequer de ter tido uma festinha ou algo do tipo. Aqueles anos foram difíceis, com sopas cada vez mais ralas e roupas progressivamente mais curtas.
Por mais que Benjamin e eu brincássemos, era notável a falta que outras crianças estavam fazendo em nossa vida. Muitas das brincadeiras de rua precisavam de mais do que apenas dois integrantes para funcionarem, e brincar com os brinquedos que tínhamos em casa havia se tornado monótono. Já éramos crianças de quase oito anos, e o que tínhamos para nos divertir era adequado a crianças de seis.

Estávamos numa típica tarde de outubro de 1940. Meu irmão e eu estávamos entediados, enquanto minha mãe tricotava algumas blusas para o inverno que se aproximava. Meu pai chegou a casa nesse momento, trazendo algumas cartas.
— Oi, querida. Oi, crianças.
Fizemos o ritual de sempre. Porém, ao pularmos em seu colo, ele acabou deixando as cartas que trazia consigo caírem no chão. Adele deixou seus cordões de lado e levantou de onde estava sentada. Foi ao nosso encontro, e recolheu as cartas caídas.
Meu irmão e eu pulamos de seu colo.
Ela bateu o olho no primeiro envelope e logo o abriu. Com um ar sério, leu o papel em alguns instantes, e levantou os olhos para Aaron.
— Querido, tudo bem, vamos dar um jeito. — E abraçou meu pai.
— Mas a demissão não é tudo, querida. Veja as outras cartas.
Adele passou uma por uma, com a mesma expressão séria no rosto. Até que um envelope um pouco diferente dos demais lhe prendeu a atenção.
— Uma carta do governo?
— Sim. Leia.
Ela começou a ler, baixo.
— Informamos que... Mudar... Conjunto Habitacional Judaico... — Seus olhares se encontraram. — Aaron, isso é sério?!
— Nosso vizinho da frente recebeu a mesma carta. E ele também é judeu.
— Mas então... Estão realmente nos obrigando a mudar daqui? Para esse Conjunto Habitacional Judaico?
— E se não nos mudarmos, guardas virão nos buscar.
Meu irmão e eu trocamos um olhar de dúvida.
— Vamos mudar de novo? — Disse ele.
— Para um lugar melhor agora, né? — Complementei.
— Vão se preparando, Benjamin e Caleb. Daqui cinco dias teremos que partir para esse endereço aqui. — E meu pai mostrou o papel com o nome da rua, o número e o apartamento do que seria nosso novo lar.
Benjamin e eu conhecíamos o endereço, já havíamos andando pelos seus arredores algumas vezes.
— Bom — comentou meu irmão —, pelo menos vamos sair dessa casa e respirar uns ares novos.
Diminuindo seu tom de voz de modo que só eu ouvisse, complementou: “Porque eu não aguento mais ficar aqui”.
E de fato eu também não. Não nos havia restado muitas coisas divertidas para fazer: não tínhamos mais dinheiro para andar de bonde, e caminhar sem rumo pelas ruas não tinha mais tanta graça. Nossa última opção, ficar em casa, era entediante para qualquer um, inclusive para Adele, que tinha em seu tricô uma fuga da realidade.
— Caleb — disse meu irmão —, como será que é esse lugar, essa casa, quer dizer, será que é pior que essa?
— Ah, Ben, sei lá. A última mudança que fizemos não foi muito boa não.
— É, foi chata. Nossa casa antes era bem maior que essa aqui.
— Sim. E dessa vez é estranho, a gente está sendo obrigado a mudar daqui...
— Vai ver eles querem judeu longe. — interrompeu.
— Acho que é isso mesmo. — Suspirei. — Mas nosso pai vai dar um jeito de tirar a gente dessa.
— Papai?! — Disse em voz baixa, apenas para mim. — Ele tentou levar a gente pra esse tal de Estados Unidos, e deu tudo errado. Agora a gente tem que se virar pra conseguir dormir todo mundo na mesma cama, se virar pra dividir a comida, se virar pra brincar, pra tudo!
— Você é ingrato, hein?
— É a verdade! Vai dizer que não? Mas... — Ele me olhou com seu semblante de preocupação. — De qualquer jeito, a gente vai continuar junto, né, eu, você, a mãe, o pai...
Antes que eu pudesse responder algo, fomos interrompidos por nossa mãe, que estava na cozinha.
— Meninos, venham comer!
Levantamos no mesmo instante, estávamos famintos.
Não conversamos mais sobre nossa nova mudança. Eu sabia que meu pai estava tentando fazer de tudo, porém uma parte de mim queria concordar com o que Benjamin dissera. Era verdade que nossa situação estava indo de mal a pior.
Mas meu otimismo e esperança fizeram-me acreditar que estávamos indo para um lugar melhor. Naquele mesmo dia começamos a arrumação de nossas coisas.
Na verdade não sabíamos o que esperar, nem o que o destino estava nos preparando nessa nova casa; nessa nova vida.

Por: Vítor Rodriguez Perencine


3

Desembarcamos na grande estação de trem de Varsóvia. Talvez meu senso de grandezas ainda não estivesse muito apurado, por ser uma criança de seis anos, porém eu parecia estar na maior estação de trem que já havia visto. Nunca antes havia visitado aquela cidade; tudo em Varsóvia parecia maior. Benjamin e eu estávamos andando a frente de nossos pais, pois andar lado a lado não seria conveniente se considerarmos o tanto de gente que passava. Ficamos olhando para cima, distraidamente, apenas observando o tamanho de tudo, que até então era novidade.
Tudo estava indo bem, até a hora em que virei para trás para comentar com meu pai o que estava achando daquilo. Mas atrás de nós não havia mais ninguém conhecido. Cutuquei Benjamin.
— Ben, cadê o pai e a mãe?!
Meu irmão se virou e também percebeu que estávamos perdidos. Perdidos no maior lugar onde até então já estivemos.
— Caleb, e agora?!
Ficamos olhando ao redor, tentando encontrar o olhar deles, por minutos; inclusive gritamos os seus nomes. Até que uma senhora nos interrompeu.
— Com licença crianças — disse ela —, vocês estão perdidos? Oh, são gêmeos!
Minha mãe me disse para nunca falar com estranhos. Porém, naquela hora, não houve como não o fazer.
— Sim — disse eu, num leve desespero. — Acabamos de nos perder de nossos pais!
— A senhora pode nos ajudar? — perguntou Benjamin.
— Venham comigo, queridos. — Falou a senhora, com sua voz docilmente gentil. — Oh, não façam essa cara de choro, logo vão encontrá-los.
E não tivemos opção senão seguir aquela moça simpática que estava tentando nos ajudar. Ela nos levou até o que deveria ser uma central, e uma outra mulher de olhos azuis anunciou nossos nomes nos microfones da estação. A senhora gentil ficou conosco, nos cuidando; até que, em menos de cinco minutos, nossos pais apareceram.
— Crianças! — Disse minha mãe, num tom aliviado que foi sendo substituído por certa raiva. — Onde vocês foram? Num momento vocês estavam em nossa frente, e no outro haviam sumido!
— Mãe, aqui é muito grande...
— É... A gente estava olhando pra cima... — Falei, tentando retirar nossa culpa.
— Oh, fico feliz que encontraram seus pais, crianças. — Disse a encantadora senhora. — Boa tarde a vocês.
Meus pais então notaram sua presença.
— Olá — falou Aaron. — Obrigado por ter ajudado. Qual seu nome?
— Sou Aleksandra Wastowski. E com quem tenho o prazer de falar?
— Somos a família Wensel. Sou Aaron, e esta é minha esposa Adele. E estes são meus filhos, Benjamin e Caleb.
— Ah, sim. Tenham um bom dia!
Meu pai não perdeu a oportunidade para pedir informações. Sacou o mapa de seu bolso e começou a falar.
— A propósito, senhora Wastowski, a senhora sabe como chegamos nesta rua aqui?
E então ela nos ajudou a localizar o lugar onde ficaríamos temporariamente em Varsóvia. Ela era uma moradora da cidade, portanto conhecia bem a região. Nós nos despedimos, e, graças àquela intimidade inicial, Aleksandra nos deixou com um leve sentimento de vazio.
Antes que pudesse dizer algo, Aaron já se adiantou.
— Benjamin, Caleb, num instante estavam em nossa frente, e no outro haviam sumido! Vocês não podem nos dar outro susto assim!
Saímos da estação e começamos a andar. Meu pai nos alertou que a caminhada seria um pouco longa, e para nós, crianças, realmente foi. Depois de quase uma hora andando, chegamos a nosso destino, uma pequena residência de tijolos expostos com muito mato crescendo ao redor. A fachada não era algo chamativo, muito menos bem cuidado. Uma pequena cerca de ferro, quase escondida pela vegetação, dividia a calçada pública do terreno. A primeira impressão que tive daquela casa era que ela era mal assombrada.
Adentramos no terreno, andando sobre o que supúnhamos ser o caminho de cimento que nos levaria à entrada. Meu pai abriu a porta de nossa nova casa, e um cheiro de falta de ventilação nos tomou as narinas. As paredes internas eram nuas, e apenas um empilhado de fileiras de blocos separava aquela casa do mundo ao seu redor. A sala de estar também servia de quarto, e na cozinha havia uma porta que provavelmente era a que dava ao banheiro.
Diante a situação, Aaron começou a falar, meio que gaguejando.
— Crianças, Adele, tudo bem, quer dizer, amanhã vou encontrar o rapaz que poderá nos ajudar a sair do país...
— Pois que ache logo — falou minha mãe. — Esse lugar cheira a mofo.
— A outra casa é melhor — disse eu.
— Eu sei, eu sei. Mas fiquem tranquilos, logo estaremos embarcando para os Estados Unidos. Por hora, vamos desfazer as malas.
E o lugar era realmente insalubre. Ainda bem que estávamos numa época não muito fria do ano, pois na casa não havia sistema de calefação. Durante as noites seguintes, meu pai teve que matar alguns ratos que eventualmente apareciam à noite nos armários e que comiam nosso cereal.

Benjamin e eu queríamos explorar as ruas de nossa vizinhança, mas minha mãe não permitiu. Tínhamos apenas seis anos, e a cidade grande era muito diferente do que estávamos habituados em Białystok. Lá, podíamos sair para brincar com nossos vizinhos, cujos pais os meus conheciam também. Nós fazíamos de tudo na rua de nossa casa. Ela não era pavimentada, e em dias de chuva nos divertíamos com a lama. Fazíamos castelos, buracos no chão; uma vez enterramos meu irmão, deixando apenas sua cabeça de fora. Voltamos para casa, e Benjamin estava coberto de lama; minha mãe ficou furiosa diante do fato de que as partes brancas de sua vestimenta jamais voltariam a ser o que eram.
Naquele primeiro dia na nova cidade, minha mãe resolveu sair de casa para conhecer os arredores e os  vizinhos, e nós dois fomos junto. Nossa casa ficava na periferia; portanto, para chegar ao centro da cidade, fizemos uma boa caminhada. O centro ficava do outro lado do rio Vístula. Mas valeu a pena, adoramos o lugar. Era movimentado, cheio de edifícios que as pessoas entravam e saíam. A área residencial de lá também era charmosa: contava com pequenos prédios de alguns andares, bem como calçadas largas. Para nós, crianças, tudo era uma incrível novidade. Uma mudança para uma cidade daquele tamanho significava muito.
Conhecemos a senhora Kamilia e seu marido Olek, um casal de idosos que morava na casa ao lado da nossa. Kamilia nos disse que seus netos passariam alguns dias em sua casa, e que eles tinham a mesma idade que meu irmão e eu. Ela nos convidou para passar uma tarde em seu quintal para brincarmos com eles, assim que chegassem.
Também fizemos contato com Alojzy e Magda, vizinhos de frente. Era um casal que tinha dois filhos, alguns anos mais velhos do que nós dois. Sua casa era espaçosa, possuía um ambiente muito agradável.
Minha mãe, Benjamin e eu voltamos para casa, com muitas novidades para compartilhar com meu pai na hora que ele chegasse. Ele estava fora de casa, procurando pelo então sujeito que nos forneceria meios de fugir do país.
Adele tinha acabado de cozinhar a janta quando meu pai adentrou em casa. Ficamos felizes em vê-lo; todavia, ele parecia desapontado.
— Aaron! — Adele foi ao seu encontro, Benjamin e eu também.
— Benjamin! Caleb! Oi crianças, oi querida!
Como de costume, nós dois pulamos em seu colo.
— Querido, como foi hoje? O que houve?
— Pois bem. Não consegui achar o tal homem. Parece que ninguém o conhece por aqui.
— E se esse sujeito estiver na cadeia por causa dos contrabandos? Aaron, isso é possível!
— Fique tranquila, ele tem seus jeitos. Tenho quase certeza de que ele está em algum lugar por aí. Amanhã vou continuar a busca.
E foi o que fez. Mesmo dormindo em uma cama apertada, numa casa que exalava um terrível odor de mofo, e tendo que ocasionalmente assassinar roedores, meu pai continuou forte e determinado em sua tarefa.
Porém, o dia seguinte também não foi muito promissor. Nem o próximo.
Até que, no fim de agosto, Aaron conseguiu algumas informações sobre o paradeiro do contrabandista, informações suficientes para descobrir onde morava. Entretanto, numa manhã de Setembro, um grande incidente aconteceu.
Estávamos tomando café da manhã, e meu pai ouvia o rádio. Benjamin e eu estávamos já nos preparando para ir à casa de Kamilia, pois seus netos haviam chegado na noite anterior e iríamos conhecê-los naquele dia. Estávamos fazendo planos, porém meu pai pediu para ficarmos em silêncio. O locutor do rádio parecia dizer algo importante. Eu não entendia muito bem o que o som que saía queria dizer, mas sei que nunca havia visto meu pai tão preocupado ao ouvir as notícias.
— Adele...
Minha mãe compreendeu sua expressão.
— Não...
— Sim, está acontecendo.
— Crianças, por que não vão brincar na sala?!
Por imposição de nossa mãe, mudamos de cômodo.
— Que estranho nosso pai hoje, não é? — Perguntou Benjamin, enquanto procurava pelo seu boneco de super-herói favorito.
— Eu acho que tem alguma coisa diferente acontecendo.
A partir daí, não sei o que os dois conversaram, pois Benjamin e eu começamos a fazer o que sabíamos de melhor: brincar. Só recordo de, não muitos minutos depois de termos iniciado a brincadeira, ter ouvido uma sirene tocando lá fora. Após alguns minutos de tensão, uma bomba explodiu em algum lugar próximo de nossa casa.
Todos nós estremecemos. Meus pais tentaram manter meu irmão e eu seguros, embaixo de seus braços. Não havia muito que fazer. E outra bomba havia explodido; e outra, e outra; uma chuva delas. A invasão nazista chegara a Varsóvia. Olhei para Benjamin, e pude ver que, assim como eu, meu irmão estava com muito medo, coisa rara de ver em seus olhos.
Acabamos não saindo de casa naquele dia. Muito menos no outro. Nem nos seguintes. Havia tréguas, mas os bombardeios continuaram por vários dias. Meu pai também não se atrevia a sair de casa, o risco de ser morto por uma bomba repentina era grande.  Passamos a viver temerosos, esperando pelo próximo susto, rezando para que nossa casa não fosse explodida. Passado o ataque inicial, nos habituamos ao significado daquela sirene. O toque de recolher acontecia alguns minutos antes de cada bombardeio, e todos residentes das proximidades, inclusive nós, nos reuníamos no porão da casa de alguém cuja capacidade de pessoas era alta. Geralmente íamos para a casa à frente, Alojzy e Magda, cujo subsolo cabia várias pessoas. Seguros em seu interior, ouvíamos as bombas explodindo na superfície, todos na expectativa de sua casa não ter sido a atingida.
Nós tivemos sorte de nossa residência ter continuado intacta.  A cada ataque, a insegurança crescia mais, e não era difícil encontrar pessoas que passaram a ser sem teto após bombas explodirem seus lares.
Conhecemos os netos da senhora Kamilia em um dia de bombardeio, no mesmo porão que sempre íamos. Eram três garotos e duas garotas, todos entre seis e oito anos. Um ótimo passa tempo era ouvir as histórias do velho Olek, veterano de guerra que sempre tinha o que contar. Ele reunia as crianças de todas as idades e assumia o posto de contador de histórias. Ora contava uma história engraçada, ora um conto de botar medo, que ele jurava ter acontecido enquanto morava numa fazenda do interior. As histórias teriam sido muito mais divertidas se não estivessem sendo contadas enquanto bombas assolavam a cidade de Varsóvia, mas aqueles momentos, embora fossem de tensão, acabaram se tornando um motivo para sairmos de casa e da realidade e viajar no que Olek dizia. Essa era a parte boa da época dos bombardeios. Repassei aos meus filhos suas histórias.
Era visível que meu pai não dormia bem há várias noites; haviam olheiras postadas abaixo de seus olhos claros, que cresciam a cada dia que passava. Mas ele não estava derrotado. No meio daquele mês de setembro, Aaron resolveu sair as ruas em sua infindável busca por aquele contrabandista, mesmo com os evidentes riscos de um bombardeio desavisado tirar-lhe a vida.
Minha mãe ficou apreensiva o dia todo. A corajosa senhora Wensel apresentou sua rara expressão de preocupação, a qual só vira tomar conta de seu rosto em pouquíssimas ocasiões. Sua feição apenas mudou quando meu pai abriu a porta, adentrando em casa em tom fúnebre.
— Aaron! Você está péssimo, o que aconteceu? O tal rapaz cobra um preço por pessoa maior do que a gente estava imaginando?
— Pior que isso. — Meu pai suspirou. — Durante os bombardeios, bem, ele não se atentou ao toque de recolher, e ficou em pedaços... Junto com a casa dele.
— Oh, não...
Benjamin tomou a palavra.
— Então não vamos mais pra outro país?
— Ben, não foi isso o que quis dizer... Ora, por que vocês dois não voltam a brincar?!
— Tá bom, pai — respondeu meu irmão.
Então voltamos para o que já estávamos fazendo. Cada um com seu brinquedo de super-herói, inventando uma história para fugir da realidade que nos cercava. Nossos pais foram para a cozinha, a fim de terem uma conversa particular. Não havia como espioná-los; eles nos veriam caso tentássemos nos aproximar. Desistindo dessa ideia, voltamos a nos divertir, inocentes perante a situação.
A verdade é que, sem o contrabandista para nos tirar do país, não havia como sair do lugar onde estávamos. A casa que ficaríamos apenas temporariamente houve de se transformar em nossa residência fixa. Éramos apenas mais uma família ali, dentre tantas outras que estavam prestes a ceder na armadilha do Holocausto.
A verdade é que estávamos sem saída. A esperança de fugir da Polônia caiu por terra, bem como as bombas, que insistiam em nos atormentar.
Nosso cenário havia mudado. A luta agora não era mais pelas fugas, e sim pela sobrevivência.

Por: Vítor Rodriguez Perencine