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Levantei mais cedo do que o normal. O excesso de movimento
de meus pais desde o início da manhã impediu-me de continuar dormindo.
Benjamin, que estava à esquerda, ainda dormia, mas logo havia de despertar
também.
Meus pais estavam conferindo os últimos detalhes de nossa
mudança. As malas já estavam prontas, aguardando-nos próximas à porta de
entrada. Assim como nós, mal podiam esperar para saírem daquela casa.
Foi após o singelo café da manhã que a ansiedade tomou
conta. Fomos saindo, como se nunca houvéssemos pertencido àquele lugar. Não
fiquei triste por estar deixando aquela residência, e parecia que todos também
estavam um tanto indiferentes. Pegamos as malas, cada um carregando ao menos
duas ou três delas. Atravessamos a porta da sala e o jardim de entrada, que por
sua vez contava com um gramado bem cuidado e um caminho cimentado visível. Minha
mãe gostava de jardinagem, e, quando não estava tricotando, empenhava-se em
cuidar das flores que plantava em seu modesto quintal, aparando o mato e
retirando ervas daninha. Em sua mala, trazia alguns vasos vazios, a fim de
também cultivar algumas plantas em nossa nova casa.
Cruzamos o portão, o qual também estava em melhores
condições do que quando chegamos naquele lugar, há dois anos. Permiti que um
leve sentimento de vazio aflorasse, pois, querendo ou não, havíamos construído
muitas memórias ali. Mesmo que Benjamin e eu estivéssemos nos sentindo sozinhos
havia mais de um ano, as lembranças iniciais de uma Varsóvia onde todos podiam
interagir sem problemas foram as que ficaram gravadas em nossas mentes.
Já havíamos dado voltas pelo bairro que estávamos nos
mudando, mas nunca tínhamos ido andando. Se a viagem de bonde já era um pouco
longa, a viagem a pé deveria demorar muito mais. Entretanto, não havia outro
modo de chegar ao destino senão este, uma vez que não dispúnhamos de carro ou
dinheiro.
Já havíamos completado meia hora de caminhada quando paramos
para descansar um pouco, na calçada mesmo. As malas pesavam bastante, tudo o
que possuíamos estava ali. Na verdade, quase tudo, pois algumas coisas tiveram
que se deixadas para trás; não seria possível carregar, por exemplo, todas as
roupas e brinquedos que possuíamos. Porém, naquele momento, nossa sorte mudou.
— Querem uma carona? Temos uns lugares sobrando aqui.
Nosso ex-vizinho da frente, Alojzy, apareceu a nossa frente
numa carroça, que também carregava sua esposa Magda e seus dois filhos
adolescentes, além de sua bagagem. Aceitamos a carona sem hesitar, e a viagem
então tornou-se confortável e até divertida.
Em uma hora estávamos no lugar desejado, situado próximo ao
centro da cidade. Era um prédio aparentemente comum que possuía quatro andares.
Muitas pessoas andavam nas calçadas, todos estavam de mudança. A carroça parou
na frente do lugar. Após agradecer a carona, meu pai perguntou:
— Mas.... Como sabem que é aqui que minha família vai morar?
Não demos o endereço do apartamento, como adivinharam?
— Vocês ficarão aqui? Ora, é neste prédio que eu e minha
família vamos morar também. — Disse Alojzy.
— Portanto seremos vizinhos novamente? Que engraçado! Em
qual andar vocês vão morar?
Neste momento, já havíamos desembarcado da charrete, e ambos
os pais de família recolhiam as malas.
— Vamos nos alojar no terceiro. E quanto a vocês?
— Nós também — disse Aaron. — Quanta coincidência.
Subimos as escadas, todos indo à mesma direção. Aaron tomou
a iniciativa de abrir a porta do apartamento 34, mas Alojzy fez o mesmo.
— Não digam que vão morar aqui também.
A situação passou de extrovertida para estranha. Após terem
a certeza de que as documentações diziam que teríamos que morar no mesmo
apartamento, Aaron e Alojzy, naquele mesmo dia, resolveram ir falar com as
autoridades a fim de que aquele suposto erro fosse corrigido. Ficamos esperando
dentro do apartamento, conhecendo seus cômodos. Não era nada modesto: possuía
três quartos, um banheiro, uma bela varanda com vista para rua. O ambiente da
sala de estar dividia-se com a copa, sendo que na cozinha também havia uma mesa.
Minha mãe e Magda ficaram na sala de estar, compartilhando
informações sobre tricô, enquanto Benjamin e eu nos aproximávamos de seus dois
filhos, algo que nunca havíamos feito. Eles não costumavam falar muito, por
isso mal sabíamos seus nomes. Em se tratando de socialização, meu irmão se dava
melhor, portanto foi ele quem conseguiu criar amizade de primeiro momento. O
mais velho chamava-se Petroski, e tinha 18 anos. O mais novo era Andrzej, com
16.
Após algumas horas, Aaron e Alojzy voltaram desesperançados.
As informações escritas estavam corretas: teríamos que viver todos juntos;
todos os oito integrantes das duas famílias debaixo do mesmo teto.
— Mas o quê?! —
Revoltou-se Adele. — Como assim eles mandam as pessoas saírem de suas
casas para amontoar todo mundo num apartamento?!
— Adele, — pronunciou meu pai, — não levante seu tom de voz
assim comigo. São as ordens, ora, o que você queria que tivéssemos feito?!
— Então você aceita isso, Aaron? — Disse minha mãe,
extremamente enérgica. — Aceita se sujeitar a qualquer ordem desses idiotas??
— Vá lá você contestar, então! De brinde você ganha um tiro
na testa!
Ela se retirou para o quarto, nervosa. Meu pai ficou
desnorteado, e Alojzy tentou mostrar que aquela nova situação não seria tão
ruim.
Para nossa sorte, aquele apartamento era espaçoso, e não teríamos
muitos problemas relacionados a desconforto. Mas continuávamos sendo duas
famílias diferentes, com hábitos distintos.
Naqueles primeiros dias, as ruas estavam cheias de pessoas.
O caos estava tomando conta daquele lugar. Assistíamos a tudo isso de nossa
varanda, que possuía uma visão privilegiada da rua. Muitas pessoas estavam se
mudando ao mesmo tempo, e, ao que nos parecia, não caberiam tantas pessoas
assim em todas aquelas casas.
Após dois dias na casa nova, alguém bateu na porta. Alojzy
abriu, e um casal de idosos com uma filha e um genro, ambos aparentemente em
seus vinte anos, apresentou-se. Após as formalidades, deram a notícia de que
teriam que morar naquela residência conosco. Ao menos era o que os documentos
diziam.
Minha mãe não estava de acordo, mas não houve outra maneira
senão aceitá-los. O apartamento já estava cheio antes de sua chegada, e agora ficara
lotado. Cada quarto, portanto, ficou para uma família, cada uma acomodando-se
do jeito que conseguia.
Todas as doze pessoas ali morando faziam com que o
apartamento, que outrora fora espaçoso, parecesse ser um cubículo. Tivemos que
aprender a ser pacientes uns com os outros. Cada um tinha maneiras diferentes
de fazer as coisas, mas de um modo geral acabamos nos dando bem.
A família de Alojzy era recatada. Com o passar das semanas,
os assuntos das conversas de minha mãe e Magda foram se esgotando, como se já
estivessem tediosas com relação à situação que estavam. Benjamin e eu estávamos
perdendo o tênue contato que tínhamos com os irmãos filhos de Alojzy; eles não
interagiam muito com “crianças” como nós. Estavam sempre conversando entre si
ou com a mãe, Magda.
O que nos dava alegria naquele lugar era o jovem casal. Viemos
a descobrir seus nomes: Ewa, a esposa, e Antoni, o marido. Amantes de crianças,
estavam sempre tentando nos distrair da realidade a qual estávamos inseridos.
Enquanto ela lia para nós histórias que ela mesma havia escrito em um livro de
contos para crianças, ele fabricava pequenos brinquedos com o que achava pelas
ruas do gueto, como carrinhos e caminhões pequenos feitos de pedaços de madeira
e de ferro.
Enquanto o nosso mundo infantil escondia a realidade, as
coisas estavam ficando ruins. Era-nos dado uma espécie de cesta básica por
estarmos vivendo no gueto, porém a quantidade de comida fornecida por mês não
era suficiente para matar nossa fome. Meu pai continuou tentando achar trabalho,
embora fosse mais difícil conseguir empregar-se no lugar e na condição que
estávamos.
A nossa situação mudou de figura quando construíram um muro
ao redor do gueto, ainda naquele ano de 1941. Ninguém entrava, ninguém saía,
senão oficiais ou pessoas autorizadas. Não era mais possível arranjar alguma
fonte de renda.
Não demorou muito para que a quantidade de pessoas
esfomeadas aumentasse, ajudando para que a situação se tornasse caótica. Era
raro achar crianças brincando nas ruas, tanto quanto encontrar sorrisos nos
rostos das pessoas. Mas essa condição não ficaria assim para sempre.
Gradativamente, pequenas apresentações artísticas começaram a acontecer em
diferentes locais, como teatros e galpões. As instalações eram das mais
simples, mas não seria isso que tiraria o prazer da população de divertir-se
por alguns momentos.
Óperas, musicais e peças de teatro começaram a ser assistidas
até mesmo pelos alemães. O fato é que as pessoas precisavam se distrair do que
estavam acontecendo, precisavam de um motivo para viver plenamente enquanto
possuíam condições físicas para tal.
Meu pai, não perdendo a oportunidade, mudou sua visão sobre
como conseguiria um sustento extra. Graças a sua antiga profissão de professor,
Aaron, munido de uma ótima memória, conseguia lembrar e recitar diversos poemas
de grandes autores da humanidade.
Ele começou a recitar poemas em palcos quando conseguia uma
vaga em algum. Meu pai foi capaz de apresentar para várias plateias, que, em
sua maioria, continham nazistas. Quase sempre acabava ganhando alguns
alimentos, como geleias, pão, leite; ou até mesmo itens de higiene, como sabão.
Enquanto isso, Adele também estava buscando meios de ocupar
seu tempo. Haviam instalado um hospital voluntário improvisado localizado
algumas ruas acima da nossa, o qual minha mãe resolveu ir trabalhar.
Diferentemente de Aaron, ela não ganhava nada pelo o que fazia; pelo menos eu e
Benjamin nunca a víamos chegar com algum embrulho sob seus braços. Mas, naquele
lugar, se você não fosse parte de alguma coisa, se você não fosse útil para
algo, acabaria enlouquecendo; trabalhar ajudando pessoas era o jeito dela de
manter-se sã.
A demanda de alimentos e remédios não era atingida, e o
contrabando contribuía para que essa falta não fosse tão grande. Minha mãe
dizia que só por baixo dos panos era possível conseguir medicamentos para os
enfermos, caso contrário a taxa de mortalidade seria ainda maior. Muitas vezes,
uma simples gripe levava o indivíduo ao óbito por pura falta de higiene e
medicação.
Ela não deixava que Benjamin e eu fôssemos consigo em seu
trabalho, por ser um lugar um tanto insalubre. Aaron, entretanto, permitia que
nós o acompanhássemos em suas apresentações, que aconteciam uma vez a cada um
ou dois meses.
Pouco a pouco, suas exposições foram ficando mais
elaboradas, graças a nossa ajuda e a do casal que morava conosco, que eram
ótimos artistas. Meu pai foi deixando de recitar grandes obras e passou a
narrar histórias fantásticas ou de suspense. Houve uma época que desenvolvemos
uma novela, contada ao público todas as tardes de sexta feira durante um mês. Meu
pai escrevia um episódio por semana e, enquanto lia, o casal aplicava alguns
efeitos especiais, como barulhos, com materiais que dispúnhamos. Chocalhos de
areia, placas de metal e outros objetos ajudavam a dar vida à narrativa, e o
público vibrava.
Enquanto minha família tentava ser produtiva, Magda, esposa
de Alojzy, ficava em casa o dia todo. Ela nunca teve uma profissão, o que
contribuía para que não conseguisse alguma forma de sustento. Alojzy, por sua
vez, saía de casa todas as manhãs, mas não chegamos a saber o que fazia o dia
todo nas ruas. Haviam dias que ele chegava no apartamento no meio da tarde, e
outros que, de madrugada, ele ainda não havia chegado; ao chegar, entretanto,
era notável que estava alcoolizado.
Os idosos, pais de Ewa, não possuíam nenhuma ocupação, assim
como Magda. Porém, eles gostavam de cuidar das plantas de minha mãe. Ela havia
trazido oito vasos de nossa antiga casa, e cada um possuía algum legume ou flor
plantado. Os legumes e flores cresciam viçosos, graças à ajuda desse casal. Mal
podíamos esperar eles ficarem maduros, pois comeríamos algo diferente de pão e
batatas.
Certo dia, em um típico anoitecer de sexta feira, um acontecimento
quebrou nossa rotina. Havíamos acabado de chegar de uma apresentação, e meu
irmão e eu estávamos na sala enquanto nosso pai organizava suas coisas em nosso
quarto. Todos os residentes do apartamento estavam lá, menos os filhos de
Alojzy.
Conversávamos com Ewa quando Andrzej, o filho mais novo, irrompeu
a calmaria. Escancarando a porta violentamente, parecendo estar desnorteado, gritou
pelo pai, que saiu de seu quarto e veio rapidamente ao seu encontro.
— Pai... — disse, abraçando-o fortemente e soluçando. —
Petroski... Os soldados levaram ele!
Ele só chorava. De primeiro momento, foi difícil cair a
ficha do que estava acontecendo. Magda apareceu, e seu jeito calmo e elegante
de ser logo deu lugar ao desespero.
— Como assim, Andrzej?! Levaram? Levaram ele para onde?
A pobre mulher estava se descabelando enquanto Andrzej
tentava contar o ocorrido. Pelo o que foi possível saber, Petroski e ele
estavam caminhando pela calçada quando foram abordados por nazistas. Andrzej
nos disse que podia sentir o cheiro de álcool proveniente daqueles homens. Após
falarem algumas frases em alemão que os irmãos não puderam entender, um dos
guardas apontou para Petroski. Os outros guardas fecharam-no em uma roda e
começaram a caçoá-lo e a bater-lhe. Andrzej tentou ajudar o irmão a todo custo,
sem sucesso. Eles começaram a andar, levando Petroski, enquanto Andrzej tentava
evitar. Um dos nazistas apontou uma arma para sua cabeça e mandou que fosse
embora imediatamente, ordem que só obedeceu quando ouviu o irmão gritar “corra!
Eu vou dar um jeito! ”. E eis que, enfim, voltou correndo ao nosso apartamento.
— Não pode ser! — Gritou Magda. — Para que direção ele foi,
Andrzej, diga! Vou atrás do meu filho!
Após dizer que eles haviam levado Petroski para além dos
portões do gueto, ela desceu as escadas correndo, pois queria tentar salvar o
filho. Não havia quem parasse aquela mulher. Alojzy tentou acompanhá-la. Quando
se trata de filhos, as mães tornam-se inconsequentes. Adele, que também estava
ali ouvindo o relato, ficou estarrecida com a situação. Ela abraçou eu e
Benjamin fortemente.
— Filhos, meus gêmeos, ainda bem que estão aqui, sãos e
salvos... eu não sei o que seria de mim se isso o que aconteceu com o filho de Magda
acontecesse com um de vocês.... — Ela olhou em nossos olhos. — Fiquem longe
desses nazistas, hein?
Começamos então a realmente temer aqueles homens
uniformizados. Não imaginávamos que esse tipo de situação pudesse acontecer a
pessoas próximas.
Magda nunca mais veria seu filho novamente.
Meu pai, a partir de então, só permitia que o
acompanhássemos em apresentações diurnas. Caso contrário, deveríamos ficar em
casa, pois, pelo o que pudemos perceber, ao entardecer estávamos mais
suscetíveis a sofrer abordagens.
Estávamos, pouco a pouco, encarando a condição exploratória
a qual estávamos sendo submetidos. Progressivamente estávamos nos adaptando
aquela nova subvida, embora fosse difícil aceitar; principalmente para pessoas
como minha mãe, polonesa antiga de cabeça dura e determinação.
Todos chegávamos a um questionamento: até quando aquela
situação ridícula e caótica se estenderia?
Por: Vítor Rodriguez Perencine.